quarta-feira, 5 de março de 2014

O Brasil passou de prodígio a problema

Um realinhamento da economia global está transformando o Brasil, até outro dia o queridinho dos investidores internacionais, numa economia frágil e de perspectiva incerta. O que aconteceu com o país que prometia tanto e agora parece não entregar nada

São Paulo - O biólogo americano Robert Trivers ficou famoso por seus estudos sobre o autoengano. Trata-se de um conceito simples: o ser humano mente para si mesmo com o objetivo de enganar de forma mais eficaz os outros.


A ideia de Trivers, um evolucionista que passou boa parte da carreira na Universidade Harvard e na Universidade da Califórnia, se aplica tanto à conquista de uma companhia amorosa quanto à tentativa de inflar ativos no mercado financeiro. No Brasil de 2014, o comportamento das autoridades tem demonstrado outra evidência do conceito de Trivers.

Ficamos sabendo pela equipe econômica que não há má gestão das contas públicas. O governo nega que a inflação preocupe. Nega a deterioração do ambiente de negócios. Nega que haja um desajuste no setor elétrico. E, por fim, nega que a economia do país se fragilizou nos últimos anos.

Seria ótimo se todas essas negativas bastassem para mudar nossos graves desequilíbrios. Na vida real, porém, elas de nada servem. O Brasil de hoje não é mais a estrela reluzente de 2010. Em janeiro, num ensaio de crise de confiança nos mercados emergentes, fomos apontados por investidores como uma das economias mais frágeis.

Em seguida, no começo de fevereiro, um relatório do Federal Reserve, o banco central americano, citou 11 vezes o Brasil como uma das nações emergentes mais vulneráveis — ficamos atrás só da Turquia, epicentro da atual turbulência. Como passamos, em tão pouco tempo, de prodígio a problema?

Na última década, o Brasil viveu as benesses de ser alçado à condição de uma das economias mais promissoras do século 21. Junto com China, Rússia e Índia, o país formou o Bric, grupo com potencial capaz de compensar o baixo desempenho dos países ricos, que davam sinais de não ter mais fôlego.

De 2000 a 2007, enquanto as nações desenvolvidas cresceram em média 2,3%, o mundo emergente avançou 6,6% ao ano. Para o Brasil, foi um pe­río­do especial de prosperidade. Era o auge do boom de commodities, momento em que o país vendeu montanhas de soja e de minério de ferro para a China a preços exorbitantes (só o minério valorizou 220% de 2003 a 2013).

Foi também a fase que apresentamos ao mundo uma riqueza inesperada, o petróleo do pré-sal. A ascensão de uma nova classe média e o aumento do consumo completaram o quadro e ajudaram a atrair um volume recorde de investimento estrangeiro ao país. Não havia quem não se encantasse com a narrativa do país que fazia tudo errado e que agora dá certo.

Corrosão lenta

A questão é que o Brasil se agarrou apenas à parte desfrutável dessa história e deixou de lado as arrumações de casa que arrasta de longa data. Como resultado, viu sua economia perder gás e um déficit em conta-corrente se avolumar. “As reformas estruturais que não foram feitas nos tempos de bonança são preo­cupantes”, diz o economista Barry Eichengreen, da Universidade da Califórnia, em Berkeley.

“Agora, tudo ficou mais difícil.” Nos últimos anos, lentamente, o país vem corroendo os dividendos conquistados na época em que era uma celebridade global. Entre dezembro de 2010 e janeiro de 2014, a bolsa de valores brasileira perdeu 410 bilhões de reais em valor de mercado — um terço dessa riqueza sumiu nas ações da Petrobras.

“Parte do otimismo em relação ao Brasil era fruto de uma expectativa exagerada quanto ao petróleo do pré-sal. Como não é claro se essa riqueza virá, houve frustração”, diz o economista Jeffrey Sachs, professor da Universidade Colúmbia, em Nova York.

Um levantamento da Associação Latino Americana de Private Equity e Venture Capital mostra que os fundos de investimento em participações reduziram em 70% sua atuação no Brasil nos últimos dois anos. Em 2013, eles alocaram 2,3 bilhões de dólares no país — ante 8,1 bilhões em 2011.

Obviamente, essa deterioração não ocorreu de repente. As evidências estão por aí há algum tempo. O que motivou os mercados a rever suas posições em relação aos emergentes, porém, é um realinhamento de forças no cenário global. As duas maiores economias, Estados Unidos e China, se movimentam em direções opostas, e isso deve mudar o padrão de crescimento do mundo nos próximos anos.

Após cinco anos de atividade apática, os Estados Unidos deverão crescer 3% em 2014. Os sinais de retomada estão por toda parte: o desemprego está abaixo de 7%, a venda de automóveis e a construção de casas atingiram o maior nível desde 2007 e os lucros das empresas americanas listadas em bolsa subiram 5% em 2013.

Essas evidências motivaram o Fed a diminuir os estímulos monetários dados à economia americana, o que deverá reduzir o volume de dinheiro em circulação pelo mundo. Se em maio de 2013, quando o Fed deu o primeiro aviso de que iria cortar os incentivos, os juros subiram e as moedas de países emergentes desvalorizaram, agora, com a efetiva redução, a expectativa é de mais turbulência.

“Sabíamos que o mundo iria passar por uma reacomodação por causa das mudanças nos Estados Unidos. Mas a sensação é que o Brasil deixou o tempo passar e não fez o seu dever”, diz Márcio Utsch, presidente da fabricante de calçados Alpargatas. Utsch, que tinha um plano otimista para 2014, já traçou uma estratégia preventiva de contenção de despesas caso a situação se agrave.

Na outra ponta está a China, que vem desacelerando. Após décadas crescendo à média de 10%, no ano passado o PIB do país avançou 7,7%. Com o novo direcionamento da economia chinesa, que deverá privilegiar o consumo em vez do investimento, há quem projete que a média de crescimento anual cairá para 6% no longo prazo.

“Esse é apenas o começo de um processo que deve durar anos”, diz Michael Pettis, professor de finanças na Universidade de Pequim e uma das maiores autoridades mundiais em China.

Forças contrárias

A combinação dessas duas forças não parece favorável ao Brasil. Em um passado não muito distante, a perspectiva de melhora da economia americana era suficiente para garantir maior crescimento das exportações brasileiras. Hoje, essa correlação é menor. Apenas 10% dos produtos exportados daqui seguem para os Estados Unidos — já foram 25% no início da década passada. 

“Os americanos não compram nossas commodities e acabam atuando mais como nossos concorrentes no mercado internacional de manufaturados”, diz o economista Roberto Giannetti da Fonseca, especialista em comércio exterior. Se não seremos muito beneficiados pelo crescimento americano, podemos, sim, ser prejudicados com a desaceleração chinesa.

Dos 242 bilhões de dólares exportados pelo Brasil em 2013, 19% seguiram para a China — 85% disso em commodities. Um dos itens da pauta que mais podem ser afetados é o minério de ferro, cuja demanda deve cair na China nos próximos anos.

Um relatório do banco americano Goldman Sachs aponta que o preço da tonelada do minério de ferro, hoje cotado a 140 dólares, pode chegar a 108 no fim do ano e a 80 dólares em 2015.

Nesse novo cenário global, a vida ficou mais dura para os emergentes em geral — e para o Brasil em particular. Embora nas primeiras semanas de 2014 os investidores tenham nivelado por baixo todos os emergentes sem lá muito critério, pouco depois os analistas passaram a reconhecer diferenças entre eles.

Um levantamento da gestora de recursos sul-africana Investec mostrou que os países que registram superávit nas contas externas e exportam manufaturados, caso da China e da Coreia do Sul, tendem a ser menos afetados em tempos de escassez de divisas.

Já os emergentes que têm déficit em conta-corrente e exportam sobretudo commodities são os que concentram mais risco — grupo do qual o Brasil faz parte. 

Diante desse quadro, cada país emergente tenta agora mostrar que pertence à turma dos prodígios, não dos problemas. Turquia, Índia e Chile acabaram de elevar suas taxas de juro. O Brasil já vinha fazendo isso.

Em janeiro, a presidente Dilma Rousseff tentou reconquistar a confiança dos investidores no Fórum Econômico Mundial, na Suíça, com um discurso em que tratava da importância do controle da inflação e do equilíbrio das contas públicas. A estreia de Dilma em Davos foi até bem recebida, mas não causou o mesmo impacto que outro novato por ali: o presidente mexicano Enrique Peña Nieto.

Nova celebridade emergente, Nieto angariou em Davos 7,7 bilhões de dólares em anúncios de projetos das multinacionais Cisco,­ Nestlé e Pepsico para seu país. Aparentemente, Dilma não trouxe nada na bagagem. “O fato de o Brasil ser classificado como problemático é resultado da adoção de políticas ruins e de má gestão”, diz o investidor americano Jim Rogers, ex-sócio do megainvestidor Geor­ge Soros.

Quase um mês depois de ir a Davos, Dilma voltou à Europa, desta vez para tentar destravar um acordo comercial entre Mercosul e União Europeia. Em Bruxelas, reiterou que tem compromisso com o equilíbrio das contas públicas e tentou minimizar a volatilidade da moeda brasileira. “Flutuação do câmbio não deve ser confundida com vulnerabilidade”, disse Dilma.

A tentativa mais relevante de conter a crise de imagem brasileira veio com a divulgação da meta de superávit, em 20 de fevereiro. O ministro da Fazenda, Guido Mantega, anunciou um corte orçamentário de 44 bilhões de reais, para entregar um superávit primário de 99 bilhões, equivalente a 1,9% do PIB.

Escondido nesse número está, de novo, o autoengano. Os números foram calculados tendo como base um crescimento econômico de 2,5% e inflação de 5,3% em 2014. De acordo com o Boletim Focus, do Banco Central, o mercado projeta crescimento de 1,8% e alta de preços de 5,9%.

Além disso, o cálculo ignora gastos com o setor elétrico. O governo previu gastos de 9 bilhões de reais. A consultoria Tendências estima que a conta possa chegar a 22 bilhões. 

Sim, a situação não é um primor. Porém, é bom ressaltar, o país não está à beira do precipício. O desemprego continua baixo, o mercado interno é forte e grandes riquezas esperam por ser exploradas. Podemos, enfim, voltar a brilhar.

“O crescimento do Brasil depende da adoção de boas políticas e da recuperação da confiança na estratégia econômica”, diz Jeffrey Sachs. Mas para isso é preciso agir. Um bom começo seria justamente parar de se enganar e enfrentar a realidade.

Fonte Exame

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